A pesquisa e o medo de contrariar
Há algum tempo fomos contratados para a realização de uma pesquisa por uma grande empresa interessada em avaliar e aprimorar a usabilidade do seu portal, a partir da experiência e da navegação dos seus próprios clientes.
Com base nos resultados apurados a partir de uma amostra robusta, foram reunidas diversas evidências e vários insights bastante interessantes que comprovavam a necessidade de ajustes de forma irrefutável.
Todas as recomendações e conclusões estavam também suportadas por depoimentos gravados em áudio e em filmes com o comportamento visual dessas pessoas, o que, de tão óbvio, praticamente dispensava qualquer reunião de apresentação de resultados.
Conhecedor dos procedimentos internos da instituição tomei a precaução de agendar uma reunião prévia com a equipe de pesquisa, de modo a validar todo o conteúdo a ser apresentado para a alta gerência.
A reação dessas pessoas (isso mesmo, no plural), para a minha surpresa, foi a de manifestarem simplesmente falta de coragem para levar esses resultados até os escalões superiores.
Isso porque o portal da empresa tinha um significado especial dentro da estrutura organizacional, onde os espaços ocupados nas páginas da web refletiam o (maior ou menor) poder das diretorias e qualquer alteração significava briga certa com os influentes gestores.
E a equipe responsável pela área de pesquisa obviamente não estava disposta a enfrentar conflitos com nenhuma das outras áreas e nem questionar algo que pudesse comprometê-la frente a outros colegas de trabalho, colocando claramente em 2º (ou 3º, 4º, …) plano o interesse dos clientes.
A pesquisa e o medo de incomodar
Em uma outra situação fomos contratados por uma outra corporação para avaliar a percepção e a associação da empresa a um determinado evento de rua que já vinha sendo patrocinado há alguns anos.
Esse mesmo estudo vinha sendo realizado, em anos anteriores, por uma outra empresa de pesquisa concorrente e essa seria a 1ª vez que estaríamos sendo contratados, o que já deixava a equipe responsável, pela contratação da pesquisa, no mínimo receosa.
Ciente dessa insegurança tivemos o cuidado de, pari passo ao trabalho de campo, ir comparando os resultados para verificarmos se alguma grande variação estaria ocorrendo e o susto foi considerável ao identificarmos uma redução enorme nessa percepção da marca da patrocinadora.
Ao compartilharmos os resultados com a equipe de pesquisa e frente a reação muito negativa da contratante passamos a investigar a razão dessa grande diferença que consistia em que as entrevistas realizadas pela outra empresa ocorriam (quase sempre) em pontos de fluxo onde havia farto material publicitário com a informação desse próprio patrocínio!
Bastaram algumas dezenas de entrevistas realizadas nesses mesmos locais para comprovar que, sem esse cuidado básico de conduzir as entrevistas em áreas escolhidas por estarem sem publicidade, os resultados eram bem similares e logicamente muito mais favoráveis à patrocinadora.
O problema era que os resultados dessa versão ‘cor de rosa’ não eram de todo verdadeiros, sugeriam que a situação do evento ou mesmo da publicidade do patrocínio não careceriam de ajustes e dessa forma contribuíam para a tornar o investimento da empresa muito menos rentável do que efetivamente poderia ser.
Ainda que os números apresentados da versão ‘cor de rosa’ (abordagem perto dos pontos de publicidade) não espelhassem a realidade, algo que imaginássemos fosse o objetivo do estudo, tal situação não comprometeria ninguém, não acarretaria nenhuma consequência, e as demais pessoas envolvidas (marketing, comunicação, pesquisa, patrocínio, …) permaneceriam todas confortáveis ‘fingindo’ estar tudo sob controle.
A pesquisa e o medo de inovar
Outra situação que temos enfrentado com muita frequência consiste no receio por parte das equipes responsáveis pela contratação de pesquisas de inovar e de adotar novas formas de avaliar produtos, serviços, marcas e empresas.
A tecnologia tem cada vez mais possibilitado diferentes formas de se realizar pesquisa com o emprego de biometria, de maneira a se complementar a avaliação do ‘racional’ também com o ‘emocional’ ou o ‘instintivo’.
Nos últimos 10 anos, com as reduções de preços ocorridas com os equipamentos e com os softwares, em conjunto com o conhecimento acumulado que vem se originando no crescente número de estudos realizados, não existe uma explicação plausível dessa resistência, até porque os resultados são impactantes e compreensíveis até pelos leigos em neuromarketing.
A única explicação plausível seria o medo, por parte das equipes responsáveis pela contratação de pesquisa, em inovar, em ousar, em fazer diferente e de desagradar às chefias imediatas, a despeito dos benefícios e vantagens existentes.
Apesar do enorme interesse manifestado ao tomarem conhecimento das possibilidades, dos recursos e até mesmo dos custos, no momento da decisão, o pêndulo tende a se fixar no ‘seguro’, no ‘convencional’, no ‘tradicional’.
Solucionando e não pensando em ‘agradar‘
O fato é que pesquisa não deveria ser feita para agradar, mas sim para buscar os esclarecimentos desejados, para embasar as decisões a serem tomadas, descortinar a realidade por trás dos números e a interpretação mais aderente aos comportamentos.
A pandemia já nos levou a reformular a maneira como muitas coisas vinham sendo feitas e com resultados surpreendentemente positivos em muitos casos como: CATI em home office, entrevistas em profundidade via aplicativos, apresentações à distância, a substituição quase que total do F2F pela web, entre outras.
Ou seja, sob pressão, o mercado (empresas demandantes e fornecedores de pesquisa) demonstrou uma considerável capacidade de reação e flexibilidade para superar essas adversidades.
A dúvida que fica ainda diz respeito à postura das equipes responsáveis pela contratação de pesquisas com relação a necessária liberdade e autonomia para realizar da melhor maneira possível o seu trabalho.
Pela constância dessa dificuldade em várias e diferentes empresas demandantes de pesquisa, me parece claro se tratar mais de um problema cultural de certas organizações do que da formação dessas pessoas.
Caberia uma avaliação e uma reflexão dentro de cada empresa com relação:
• até que ponto essas equipes responsáveis pela contratação de pesquisas têm liberdade para realmente escolher as melhores metodologias?
• até que ponto existe espaço para se inovar na área de pesquisa, mesmo que embasado em dados e evidências técnicas confiáveis?
• até que pontos as pesquisas contratadas têm sido realizadas com o intuito de buscar a verdade e não apenas agradar a superiores?
Ricardo Luiz Checchia
Engenheiro, sócio da Checon Pesquisa,
Membro da Esomar e conselheiro da ABEP – Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa